|
Mário Maia |
Para o resgate da memória do povo
tarauacaense, transcrevo um dos trechos do livro “Rios e Barrancos do Acre” do memorável médico e ex-senador acreano Mário Maia, editado em 1968, em Niterói (RJ). É uma transcrição acerca
das casas de farinha de Tarauacá, barracões rústicos (feitos de madeiras, sem
beneficiamento “industrial” e cobertos de palhas), construídos em épocas de
eleições para congregar e alegrar o eleitorado, cujos resquícios ainda
presenciei nos anos 90.
A casa de farinha [...] não era uma casa de
farinha propriamente dita, isto é, o local onde se procede o fabrico de farinha
de mandioca com caititu, roda bolandeira, prensa, forno, tacho de torrar, cocho
para separar a goma do tucupi e demais apetrechos dessa faina de pequena e
artesanal indústria de herança nativa, de transformação da macaxeira. A “casa
de farinha” era um grande galpão cujas tesouras, linhas, caibros, longarinas e
pernas-mancas, eram feitas de madeira roliça, sem descascar e coberto com palha
de ouricuri. O assoalho era de tábuas grosseiras, sem aplainar, postas,
ajustadas e pregadas lado a lado. Esse grande barracão assim descrito,
construía-se periodicamente em Tarauacá, mais ou menos no mesmo lugar, nas
épocas de eleições, daqueles tempos em que havia comícios e quando se ia falar,
não se fazia boca-de-siri. Era edificada na beira do rio, bem em frente de onde
o Muru conflui com o Tarauacá. Aliás, essa denominação de Casa de Farinha, foi
oferecida pelos adversários que assim a denominavam, pejorativamente, a fim de
causar raiva aos opositores, querendo significar que o local de suas festas
políticas, pela aparência tosca da construção, assemelhava-se mais ao galpão da
bolandeira e do caititu.
Aconteceu que os partidários do PTB que
construíam o barracão, ao invés de se apoquentarem, glosaram o chiste,
transformando-o em sigla de propaganda político-partidária, popularíssima,
invertendo, desse modo, a provocação dos pessedistas.
Os trabalhistas de Tarauacá falavam com
euforia e até com uma certa vaidade: – “Pois é; é nossa Casa de Farinha mesmo.
Lá nós ralamos no caititu a macaxeira para fazer farinha, beiju e tapioca”. As
palavras aqui vão além do seu simples significado: é uma alegoria para mangar
do chefe principal do PSD no Acre que também era conhecido como deputado
“macaxeira” devido a uma comparação pouco feliz que o mesmo, em uma das
campanhas políticas, em um certo comício, fez com as raízes amidógenas dessa
euforbiácea com os hábitos alimentares primitivos dos acreanos.
Assim, o povo do “peteba” queria dizer que ia
triturar o político, na casa de farinha, transformando-o em farinha, goma e
tucupi. Dessa forma, com o passar do tempo, Casa de Farinha no município de
Tarauacá, na linguagem política local, deixou de ser um simples galpão
improvisado, para o povo humilde se divertir, nas épocas de campanhas
políticas. Casa de Farinha tornou-se uma instituição de forte significado
político, com características próprias e interessantes. Dessa concepção
farinosa, institucionalizada pelos habitantes dos vales daqueles rios,
principalmente nos períodos de propaganda para os pleitos eleitorais, costumam
criar-se várias expressões populares derivadas desse fato, no sentido
figurativo de exaltação do Partido, em suas manifestações folclóricas, tais
como: “vamos fazer farinha”, “vamos à farinhada”, “vamos torrar beiju” ou
“fazer tapioca”, expressões que no período da campanha política, equivalem a:
“vamos mandar brasa”; vamos pular, gritar, dançar e dar “vivas” aos nossos
candidatos, “vivas” ao nosso partido e “morras” aos adversários. Casa de
Farinha, portanto, em Tarauacá, significa povo humilde, simples, de mãos
calosas; gente afeita ao trabalho da agricultura, do seringal, dos roçados, das
praias, dos rios e dos barrancos do Muru e do Tarauacá.
Outro nome que venha a ter a agremiação
representativa dessa gente e desses valores, vericar-se-á sem esforço que a
expressão “Casa de Farinha” vai ficando, sedimentando-se, enraizando-se e
enriquecendo de significado, já agora não mais simbolizando um galpão de palha,
porém, sim, um estado de espírito social, político-partidário, cada vez mais
consistentes em seu fim, influindo significativamente na sociedade local. De
fato, extinguiram-se partidos, criaram-se novas siglas, mas a alma alegre das
farinhadas não se extinguiu. Ela continuou e continua transformando a macaxeira
em farinha, beijus e tapiocas. E não é mais só em Tarauacá. Todo o Acre está na
farinhada, aderiu a farinhada e quanto mais macaxeira houver, mais caititus
aparecerão para ralá-la. Assim, a expressão “Casa de Farinha” permanece viva,
mesmo quando aquele galpão de madeira roliça e palha de ouricuri vai se
acabando até se construir outro no mesmo lugar.
MAIA, Mário. Rios e Barrancos do Acre. Niterói:
Gráfica do Senado, 1978. (p. 121-123)
P.S. caso alguém
tenha alguma foto de uma “casa de farinha”, agradeceríamos se nos enviassem uma
cópia.